26/02/2010

Amor em conta gotas

Amor em conta gotas

Fui a um farmacêutico, não muito convencional, e lhe pedi desesperadamente um remédio:
- Doutor, você precisa me ajudar.
- É o coração?
- Doutor, como adivinhou?
- Seus olhos, inchados, logo anunciaram.
- Pois bem, qual a solução? Farei qualquer coisa.

A solução que me ofereceu, infelizmente, em nada me ajudaria, pelo menos com essa garota, causa de minha enfermidade.
Segundo me afirmou, o amor é um jogo, e se um dos dois não joga, o outro logo se cansa da brincadeira.
Receitou-me amor em conta gotas.
- Mas Doutor, como é que toma esse remédio?
- Não toma, dá.
- Ahhhh ! então devo dar este frasco para ela?
- Sim.
- E que gosto tem?
- Depende de quanto ela tomar.
- Então já sei; venho por trás devagar, agarro-a fechando-lhe os olhos e viro todo o frasco em sua boca de uma vez. Quando tiver bebido todo o frasco irá virar para trás, e, com olhar tenro apaixonado, outro beijo, quiçá mais quente que o primeiro. Certo doutor?
- Nada disso. Te disse que o remédio é amor em conta gotas. Sei como é difícil olhar aquela garota e não falar mil vezes o quanto é linda, mas, como disse, o amor é um jogo. E o único remédio é ir com calma, passo por passo, frase por frase. Te gosto, te adoro, te amo. Dia, mês, ano. Compreende?

Àquela altura percebi que não haveria mesmo solução para meu problema, sabia perfeitamente que ali estava por não ter usado o remédio conforme a bula. Não sei o que foi, alguma ilusão juvenil, pensei que seria diferente. Que poderia me abrir com ela, e que me compreenderia e se interessaria por mim... Se pelo menos seus olhos não fossem tão inebriantes, e seu olhar não me petrificasse, qual tal o da medusa, daria gota a gota o remédio para meu benzinho.
Mas, como a vida não é tão fácil, volto pra casa e me sento no sofá. Olho pro enorme frasco, que seria suficiente para anos de relacionamento. Tiro a tampa e bebo tudo de uma vez.
Esta noite me embriago.

25/02/2010

Viva a globalização !

Chego soberano ao bar do velho quase-caindo-aos-pedaços e estou pronto para oferecer ao jeca caquético o que há de mais moderno no campo da ergonomia segundo as pesquisas de especialistas do mais alto calibre. O 70 anos curvou 90 graus entre barriga e pernas para passar por baixo da bancada daquele bar, que, como a maioria, possui uma tábua de granito (ou similar) que liga as duas paredes laterais não sobrando opção ao funcionário a não ser curvar-se cada vez que precisa buscar uma cerveja do outro lado do balcão. Imaginei que o velho simplesmente herdara por mimetismo o estilo seja-ginasta-e-passe-por-baixo-da-bancada e não se dera conta que é incômodo para suas preciosas vértebras continuar o que vem fazendo há décadas. Assim, com todo respeito que encontrei, pronunciei aquilo que parecia uma observação idiota, mas, no mínimo, me daria a satisfação de ajudar o sujeito senil:
"Por que você não corta um pedaço do mármore para não precisar se abaixar dessa maneira tão desconfortável ?"
Ao sugerir o óbvio tinha a sensação de que os esforços dos centros de pesquisa de ponta acabavam por chegar aos quatro cantos do mundo (ainda que com alguma defasagem) graças ao que chamamos globalização.
Naquele dia nós nos ensinamos mutuamente. Eu com minha dica sobre cuidados com o dorso. Ele com uma resposta que francamente não entendi bem, não só pela carência de dentes na boca do dito cujo, mas também pelo sentido da frase:
"Você gosta é de moleza, né ??? "

Pororoca

O rio virou mar, ou foi pro.
Seja causa ou consequencia,
a pergunta ou a sentença,
eu me perco em reticências.

Não sei se nasci ou dei origem a meu pai,
e isso porque, como só poderia ser,
não sei mais se o tempo é unidirecional.

Quando era criança parecia viver melhor.
Então o que foi que aprendi ?
Aprendi, mas sempre esqueço,
que há sempre um recomeço,
por lembrar depois ter fim.

19/02/2010

Diga espelho meu

As nuvens se reúnem
e mudam de cor.
Ao som do primeiro tambor
cai o carnaval em Olinda.

A tantos outros
tanto brilha o sol !

Termina a reunião,
tudo ficou decidido.
Aquelas pesadas, choraram.
Outras, tão leves, riram.

Os raios cortam minha pele,
mas não iluminam o coração.
Será a cachaça, desgraça, de Chico,
minha única salvação?

Desço a ladeira
sobe a canseira
ela mora, dentro, em mim.

Olho para o lado
o frevo é todo mundo.
A alegria me invade
por quase um segundo.

Pedro Paulo

Pedro diz que Paulo é o tal.
Mas quem é Pedro?
Pedro é o maior mentiroso da cidade,
diz Paulo.

Paulo deve ter razão,
se é mesmo o tal,
mas aí vem o círculo vicioso
e fujo da capital.

O estado é o das dúvidas,
faz fronteira com meu ser.
Pego a estrada noite toda,
enquanto a roda perecer.

Mas toda curva é Pedro.
Toda reta é Paulo.
Olho o espelho,
me sinto mais calmo.

Sei que vou voltar,
mas não sei a hora,
porque questionar
é a minha aurora.

07/02/2010

Ímã

E pensar que fui àquela festa por acaso.
Apesar de ser a festa de um amigo, não pretendia ir.
Era apenas mais um churrasco, sem nenhuma comemoração especial.
Acho que foi o vento que me levou. Levou mas nunca me trouxe de volta para onde morava, isso porque a noite foi ao mesmo tempo maravilhosa e trágica. Maravilhosa como sua irmã. Trágica como a saudade. Pode parecer estranho questionar um momento tão bom quanto aquele. À medida em que as pessoas iam dormir, mais perto me tornava de minha primeira (e talvez única) chance de falar a sós com ela.
Desde o começo da festa fui completamente absorvido por sua beleza inebriante e seu jeitinho que dá vontade de passar a vida inteira observando. Mas naquele momento, enfim, estávamos sós, e apesar de seu beijo que até hoje não desgrudou de minha boca, não posso dizer se foi bom ou ruim o que aconteceu. Se alguém te oferecesse a fruta mais doce do mundo, mas dissesse que só poderia experimentar, será que o prazer compensaria a vontade de repetir?
Se fosse sábio como Vinícius de Moraes, não estaria me perguntando se foi bom ou ruim. Diria que foi bom e ruim. Entenderia a tristeza não como oposto da alegria, mas como sinônimo da paixão, da saudade. Entenderia essa vontade de vê-la uma vez mais e pegar de volta aquela parte de mim que ficou para trás aquela noite, e que me deixou um vazio no peito.
Mas, se não sou Vinícius, apenas olho fixo sua foto.
E imagino...

02/02/2010

Abc da Volta

Aceite. Basta calar. Deixe ele falar grosseirias. Hoje isso jorrará lágrimas, mas negligencie. O prêmio que resta: salvar tua união, vosso zelo.

Hóspedes